sexta-feira, 2 de julho de 2010

SUA HISTÓRIA

Hoje é um dia muito especial: depois de nove meses de muita espera, você nasceu. Essa data vai ficar marcada por toda a sua vida. Se acostume, será a primeira de muitas. Todos os anos, nessa mesma data, este vai ser um dia em suspenso do resto do calendário, para você, e isso não significa que será bom ou ruim, às vezes é um, outras o outro, mas em todo o caso é uma data que você sempre ficará estranho.  Hoje você não sabe muito bem o significado disso, pois que ainda cada dia é um dia diferente, com uma nova descoberta, hoje você descobre uma nova cor, um novo ambiente, amanhã novos rostos, novos sons, novas formas de novas coisas igualmente diferentes. É normal nesta fase da vida. Mas com  o passar dos anos você vai perceber: em alguns aniversários ficará feliz, em outros se preocupará com a passagem do tempo. Mas calma, ainda há muita coisa a acontecer, e o tempo nunca para de passar.  Você vai aprender que existem outras datas, que comemoram o aniversário de outras pessoas, que é o momento de suspensão delas, também, assim como você tem o seu. Então não se entusiasme demais, você não é nisso diferente em nada dos outros, e mesmo nesse dia especial para você, existem milhares de outras pessoas que você não conhece mas que também comemoram. O mundo não se volta todo pra você. É que nem o tempo. Nunca para. Quando você estiver um pouco mais crescido, você começará a se relacionar mais intimamente com as pessoas. Agora você passa a ter outros dias especiais, que marcam o começo dos seus namoros. A cada namoro, um data diferente, e para todos os casos o dia dos namorados, onde todos comemoram novamente o fato de ter um companheiro. E levando a vida de namoro em namoro hoje é o dia do seu casamento. Essa data vai ser levada mais à sério. Ninguém comemora bodas de namoro, ou de noivado, mas de casamento, passa da conta dos cinquenta e se sucedem em grau de valor os minerais, rubi, esmeralda, prata, ouro, diamante. Guarde essa nova data, porém há quem diga que não convém, em todo o caso, esquecer do dia dos namorados, pois ele mantém acesa a chama da paixão, um casal estar eternamente namorando, mesmo já tendo alcançando um passo adiante. E falando nisso, olha só, você, que comemorou dias dos pais, dias das mães, talvez os dois, talvez apenas um porque o outro lhe faltava, agora você mesmo se tornou um pai ou uma mãe. E a partir de agora, você terá mais uma data para ser festejado. Parabéns, mais um presente. Mas isso também não significa mais nada, pois que todos os pais, ou todas as mães são igualmente festejados nesses dias. E nesses dias você vai ouvir na televisão ou ler no jornal que a data é só um pretexto, pois pais e mães são para serem festejados todos os dias, é bonito, mas não se anime, no fundo você sabe que não é assim. Mas todos os momentos tem que valer, os filhos estão crescendo, trilhando os próprios caminhos nessa mesma estrada que você já trilhou, vestibular, carreira, casamento, os próprios filhos...não, não me olhe com essa cara feliz. Por mais que exista um dias dos avós, desse ninguém lembra, não pegou. Mas você ainda tem filhos. Você continua sendo um pai, ou uma mãe. E a alegria de ver seus netos, essa não existe coisa que pague. Você sabe, você está sentindo isso.  E quem sabe, então, ser brindado com a dádiva de poder ver bisnetos, tataranetos...pode acontecer, mas não é uma regra. Pois hoje, nesse exato momento, você, que já estava se sentindo um pouco diferente, que intuía que este dia trazia em si um efeito de suspensão ainda maior que sua data de aniversário, de casamento, de nascimento de seus filhos, ou qualquer outra data comum, aí incluso Natal da solidariedade universal com data marcada e aquele sabor de festa  e passagem dos rituais de ano novo, você de repente vai parar por um instante, respirar fundo e pensar: É agora. Só pode ser agora. E já é. Você atingiu finalmente o sentido pleno da palavra suspensão ao atravessar essa linha ténue que mantém seu corpo agindo animado pelo sopro vital que te visitou muitos meses antes daquele dia em que todos os anos você comemorava o seu nascimento, o dia sempre desconhecido - e por isso mesmo ignorado - da fecundação, agora tão distante, mas também tão próximo. Pois esse que antes foi o seu acordar do nada pra a vida, agora se aproxima de você, quando você adormece da vida e desperta para a morte. Não fique triste, todos tem sua hora. Você nunca mais se verá comemorado em seu dia de nascimento, casamento, pais, mães, e etc, mas ainda sim uma data resiste. E é esse mesmo dia em que você morreu. Todos os anos, seus filhos e netos, na verdade mais seus filhos, pois que seus netos talvez nunca guardem esse dia, se lembrarão que foi o dia em que você simplesmente deixou. E vão lembrar de você, comovidos, durante esse dia inteiro. E hoje, então, dia de finados, também você será lembrado. Talvez você ganhe um vaso de flores, e no próximo ano, nesse mesmo dia, quando você ganhar outro vaso, aproveitarão a ocasião para recolher esse, já seco e rachado, para jogar fora. É, agora será assim. Nesse dia, pelo menos, todos vocês são lembrados, até os esquecidos na própria data de aniversário de morte. Veja, o cemitério está cheio, várias famílias enchem suas ruas, os floristas trabalham o dia inteiro para garantir aos visitantes os presentes que vocês estão recebendo. Sua neta inclusive, também teria comprado aquele vaso de antúrios que ela sempre te traz, na entrada do cemitério, se nesse ano, ao acordar ela não tivesse que ser levada às pressas à maternidade, pois o seu bisneto já estava golpeando o ventre inchado onde ele surgiu, ansioso por ver a luz do dia. Veja só. Afinal de contas todos os dias estão sujeitos a se tornarem datas comemorativas de qualquer coisa que seja. E logo mais um nascimento...
Hoje é realmente um dia muito especial. Depois de nove meses de muita espera, você nasceu.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

O HOMEM ALHEIO

Desse homem sempre se disse por aí que era um sujeito com costume de se alhear dos outros todos e da vida comum. Da vida, acho até exagero dizer, com certeza era na sua vida que mergulhava quando estava naquele jeito de sempre estar pra dentro. Dos outros, de fato sempre assim era. Onde estivesse, numa fila, numa mesa de bar, no balcão da padaria, andando na rua num seu passo todo próprio, um movimento acelerado, corpo todo jogado pra frente seguindo o olhar, sempre alheado. E andava assim como se esquecesse do que havia à sua volta, ou como se visse outra coisa além daquilo que havia, outros lugares, outras ruas, outros passantes. Muitas vezes  de brusco parava seu movimento no instante mesmo anterior à ser pego por um carro em toda velocidade, no meio da rua. Ás vezes era ele quem antevia o movimento na hora certa e parava, às vezes era o motorista quem freiava, logo depois gritando impropérios e xingamentos, o que o homem nunca ouvia, pois já estava longe, retomando seu passo de sempre. Pros mais íntimos, eu inclusive, ele segredava que guardava estórias dentro de si. Que elas o assaltavam, de repente, sempre em momentos não imaginados, que uma coisa qualquer que visse ou ouvisse fecundava na sua cabeça e começava a gerar uma pessoa, ou um lugar, e esse ia crescendo, crescendo, evoluindo, se desenvolvendo e virava vidas dentro dele que ele ia testemunhando enquanto se alheava da sua própria vida do momento presente. Um dia eu pedi pra ele pra que ele me mostrasse essas histórias. Ele abaixou a cabeça, flagrei até melancolia no jeito dele, e me disse que não escrevia nada, pois que isso pedia tempo e ele não tinha muito tempo pra se dedicar a isso. Que tinha trabalho, casa, coisas. Pedi então que me falasse delas, e ele também não falou. Falou que elas, as muitas, existiam dentro dele e ele guardava elas consigo, que nunca se atrevia muito a libertá-las, que o que ele desvivia de sua vida vivendo dentro as vidas que gerava já o roubava demais, que sabia que tinha a fama de alheado, que tinha mesmo medo do que podia acontecer se ele deixasse as estórias de dentro vir pra fora. Que até de guardar dentro tinha medo, mas que não conseguia se esquivar, pois quando via já estava bem mais dentro, vivendo o que imaginava.  E assim foi que foi vivendo, sendo dentro ou fora, com a passagem do tempo, com a vida do de fora envelhecendo. E era nítido como rápido o homem envelhecia, bem mais que todos os outros, como embranquecia os cabelos, diminuía, ganhava força nos traços da cara, e engordava muito. Naquele passo da pessoa ir diminuindo, quanto mais velha fica, e no entanto seu bojo crescendo. Até que vem um dia e ele passou mal, no meio da rua. Foi quando saía de casa pras suas caminhadas de passo rápido, agora um pouco mais lento, com o avançar da idade, aqui mesmo na frente da sua casa, eu vi tudo, estava no portão conversando com outra vizinha que voltava com as sacolas cheias do mercado Seu rosto de súbito fez uma expressão dolorida, ele colocou as mãos na barriga, as pernas começaram a amolecer e ele caiu na calçada. Corri pra ele, eu mais uns outros, a vizinha das sacolas ficou onde estava, olhando curiosa, talvez pelo peso das sacolas, sei lá, só sei que ela e mais uns outros que vieram na janela assistir o que se passava, curiosas da correria e do grito forte que o homem soltou antes de cair. Fiquei no redor dele, apoiei a cabeça dele com a própria bolsa, que ele carregava. Peguei na mão dele, pois que ele se contorcia todo no chão. Falava com ele, pedia pra ele respirar, mas ele parecia não ouvir muito, ou não conseguia responder, pois era com muito dor que se contraía todo. Até que ele parou, seu olhar pausou pra cima, no céu, mirando o sol forte que brilhava amarelo naquele mais ou menos meio dia meio dia e meio. Respirou fundo, fechou os olhos e então soltou um grito, o grito mais forte do que os outros que tinha soltado até então, e junto com o grito, todo mundo viu, eu juro que não enlouqueci e tem um bando mais de testemunhas pra te confirmar a história: a barriga do homem se abriu e um bando de pessoas e de coisas começou a saltar de lá de dentro, uns homenzinhos pequenininhos, suas mulherzinhas, vestidos dos mais diferentes jeitos, até com roupa de época, que nem dessas de novela antiga, saiu também uns bichos, uns cachorros, saiu até mesmo, e continuou a jorrar por um tempo, uma cachoeira que desaguou na sarjeta e foi correndo rua abaixo, vi mesmo uns peixinhos pulando nela. O homem assistia a tudo compreendendo o que se passava, ao contrário de todos nós que flagramos com susto todos aqueles homens, bichos e coisas se espalhando e sumindo pela rua, virando a esquina, entrando nas casas, na padaria, subindo em árvores, pulando no esgoto. Até que a coisa toda parou, o homem soltou um último suspiro e se contraiu. Nesse momento saiu ainda uma coisa voando que a gente de princípio pensou que fosse um pássaro, pois saiu e foi reto pra cima batendo asas, mas quando a gente pode enxergar direito viu que era um último homenzinho que seguia voando, batendo suas asas, calminho como uma borboleta, e sumiu das vistas de todos, se apequenando no céu, longe. Foi então que o homem, na calçada, se livrou da contração final e repousou de vez. Foi enterrado naquele dia mesmo, sem velório nem outra coisa. A hoje de vez em quando a gente vê algum vizinho saindo pra rua enxotando com a vassoura algum homenzinho ou bichozinho qualquer que ainda se manteve oculto nas frestas da casa, e o homenzinho sai correndo, fugindo das vassouradas, pela rua, ou se enfiando em algum outra casa mais desatenta. Eu me rio quando vejo, fazer o que. Da minha parte, quando surpreendo algum coisa aqui em casa, deixo na beirada da porta uns farelinhos de biscoito e um pirezinho com leite e me alheio eu do que eu vejo. Eu que não vou sair por aí dando pancada nos sonhos dos outros.

terça-feira, 22 de junho de 2010

FLUVIAL

O que passa nessa beira mais que o rio?
Só eu
só eu sei o quanto passa esse rio
só eu que sinto o frio
só eu que guardo as águas e o frio

Se minha carne é fraca
é porque é pedra que a água esburaca
e o é pois que é margem
só eu guardo em minhas roupas a paisagem
e sob o sol, o céu, a lua corro sem paragem

Na minha pele o sol reluz seu brilho
me ofusca aos olhos de quem me vê passar
e eu passo mais, chega a noite e não me apaga
porque a lua me tatua de estrelas quando escura a  madrugada

Mesmo porto em que passei e passarei
só eu guardo no meu corpo todo o cais
só eu passo sem cansaço e sem parar
e corro sempre em frente para o mar.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

UMA PRECE NÃO FEITA POR JOSÉ SARAMAGO

Quando, de manhãzinha, enquanto esperava para fazer um teste, meu telefone tocou trazendo  notícia d morte de José Saramago, o primeiro pensamento que me ocorreu foi, assim como faço com todos os ilustres meus desconhecidos que admiro e respeito, rezar por ele. Meu pensamento, porém, travou: rezar por um homem que justamente era tão conhecido por seu ateísmo ferrenho? O que ele diria disso? Imaginei-o pairando por sobre os céus de Lisboa e por outros céus, feito agora somente de matéria etérea e ectoplásmica, num voo sereno, quando de repente surge uma luz, vinda de São Paulo, luz que é minha prece por ele. Ele pára, reconhece e logo gargalha de mim, ou responde com um frase altamente articulada, dizendo que não podemos confiar em Deus, ou coisa do tipo, com seu português lusitaníssimo, e segue seu voo tranquilo. Não, não estou escrevendo sobre religião, boas intenções, solidariedade e outras coisas do tipo. Nem destinaria minha prece o mesmo Deus por quem ele sempre deixou claro sua repulsa. E mesmo que rezasse para Oxalá, nessa sexta-feira de manhã, talvez para Saramago esta palavra, pensei, não representasse mais do que uma interjeição muito usada por ele, inclusive, talvez me respondesse, oxalá você veja além de suas crenças. Será? O fato é que Saramago morre deixando para o mundo seja crente, ateu, comunista, o que for, uma obra vasta e consolidada. Não acho exagero dizer que se tratava de um dos únicos gênios da literatura vivos até então. Eu, pessoalmente, me sinto feliz por ter sido contemporâneo de um autor como ele. Pense bem: não gozei da atualidade histórica de Shakespeare, Dostoievski, Machado, Guimarães e outros, mas pude acompanhar ano após ano novos lançamentos de José Saramago, inclusive posso me gabar do fato de ter um exemplar da Viagem do Elefante assinado pelo próprio. Para mim - como aliás deve estar sendo óbvio - Saramago era mais do que um simples autor que gosto de ler. Saramago era um conselheiro, um professor, um profeta, quase como aqueles que ele várias vezes utilizou de epígrafe, os bíblicos, de barbas vastas, túnicas esvoaçantes o vento com o olhar dilatado e feroz e a boca contraída no ato da epifania em revelar a palavra definitiva. O fato é que Saramago era careca, nunca foi fotografado barbado. Um dos arquétipos do narrador de histórias é o cego, como nos legou a tradição grega através de Homero, Tirésias, que também servia de oráculo. Saramago não era cego completamente, mas usava um daqueles óculos de lentes grossas que tornavam seus olhos pequenos ponto perdidos no fundo de sua face. E era com esses dois minúsculos olhos olhos que ele enxergava o ser humano de hoje e de antes, deixando impressas em suas páginas parábolas que justamente serviam para nos alertar sobre todo o tipo de ignorâncias e horrores de que éramos capazes. E sempre tudo feito para e pelo ser humano. De fato creio que se Saramago não acreditava em Deus, era porque acreditava demasiadamente no homem, e isso era o mote condutor de toda a sua obra. Um idealista, no sentido puro da palavra. Tudo bem, um comunista tardio, pode-se até acusá-lo de um ideal passadista. Mas este era o ponto de partia sua crença. Como diz o sociólogo Chico de Oliveira: "Em todo grande momento da história há ilusões. Sem ilusão ninguém vive" E Saramago não poderia viver e criar algo tão forte quanto o que criou se não tivesse as suas. Pois se até Nietzsche, autor do famoso Deus Está Morto, no final de sua vida voltou-se aos cultos ancestrais dionisíacos, como então podemos criticar uma crença, se também temos as nossas, e se também elas nos levam, como a todos, em incoerências e ignorâncias? O fato é que Saramago acreditava, antes de tudo, no homem. Seus romances, que em grande parte chegam a ser passagens apocalípticas, quase sempre terminam de maneira redentora, a vislumbrar um nova cosmogonia depois do caos, atestam isso. No final de Jangada de Pedra, após um trecho do continente europeu se desgrudar e navegar à deriva pelo alto mar, a vara de negrilho volta a ficar "verde, talvez floresça ano que vem". Depois que a epidemia de cegueira finda, em outro romance,este mais famoso, quando a Mulher do Médico, a única que não havia sido atingida pensa que vai cegar, enquanto os ex-cegos dançam na rua, no meio da chuva,ela olha para o céu, sua vista também embranquece, porém, ao baixar os olhos a cidade ainda estava lá. E Ponto Final. Assim como com Cristo e Caim, em vez de fixá-los numa critica geral a uma tradição religiosa que ele critica em primeiro lugar, Saramago, através de seu famoso narrador redime-os descrevendo-os antes de tudo como humanos que sofrem em sua própria carne os desmandos infantis do Deus que se diverte em brincar com seu destino, que se torna o de todos nós. Em sua crença demasiada no homem, ouso dizer, inclusive, que Saramago fez mais por estas figuras do que  própria tradição que os cultua faz. E é por sua mesma crença que imagino, enfim, que Saramago, pairando etéreo nos céus de Lisboa e por outros céus, ao reconhecer vinda de São Paulo a luz oriunda da minha prece - pois enfim eu a fiz, mais como uma conversa, uma mensagem - parou nos ares e sorriu. Recebeu-a, à sua maneira agradeceu-me e continuou no seu voo displicente, ainda observando os homens como sempre fez, só que agora com um pouco mais de distanciamento, ainda além daquele que todo artista tem quando está trabalhando. Pena que não poderemos ter em mãos mais um fruto dessa sua observação. Mas tudo bem. O que disse é muito, e ainda poderemos ler e reler e sempre descobrir outros significados além dos primeiros. Sua "profecia" permanecerá.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

PRA AGRADECER IEMANJÁ

As flores eu comprei foi pra festa. Um buquê cheio de rosas brancas. Foi pra entregar no mar. Comprei de manhã cedinho, ainda, no caminho da praia, perto de casa, elas estavam todas em botão. Eu pensei: De casa até a praia dá chão, é caminhada até o ponto, é distância pra correr de ônibus, depois é caminhar até a beira. Maria Rosa, eu ouvi dizer que ia também sair manhã cedinho pra ir pro mar. Ouvi dizer de orelhada, andando na rua, no caminho de casa, eu de longe avistei ela no portão da Zulmira, e elas conversavam se esquecendo da vida, como sempre conversam. Daí eu, como não quer nada me esqueci também. Diminui meu passo, comecei a assobiar uma coisinha qualquer  e passei de orelhada olhando o céu, como quem vê se vai chover, se vai fazer sol pra não estragar a festa do dia seguinte. De orelhada eu ouvi ela dizer que sim, que iria sair manhã cedinho, e qu tinha passado o dia todo no terreiro, com os preparativos. Não comprimentei, não foi de vergonha, nem falta de educação. Foi que Maria Rosa é muito apegada nessa prima, e a prima nela. Mas Zulmira é evangélica, e começou o sermão. Que essas coisas de macumba na beira da praia é coisa do diabo, que se disfarça de santa pra receber adoração e presente, que o diabo é vaidoso. Deve ser por isso que Maria Rosa é bonita de doer na vista e a prima Zulmira é feia que nem o cão. Daí eu apertei o passo, senão sobrava pra mim também, eu já tô por aqui de sermão da Zulmira. Só sei que vim bem cedo, comprei as rosas e esperei no ponto pra vêr se eu via Maria Rosa e inventava que tava chegando agora, e ia com ela. Mas deu meia hora, uma, ia dar duas e ela não vinha. Fui, que eu também não era besta de perder a festa de Iemanjá só por causa de mulher, não sou homem de me dobrar não! De casa até a praia deu mais uma hora e meia, o trânsito tava cheio, bem no caminho da praia. Depois vem me dizer que é o maior país católico do mundo, que a macumba só se faz escondida. Nessas horas é que a gente vê, ninguém deixa de pedir nada pra Iemanjá, pois todo mundo é vaidoso e aflito, que nem o diabo da Zulmira. Até a orixá ficou branca pra não ferir o pudor de quem não bate cabeça mas vem agradecer alguma graça alcançada, que talvez com Santo Expedito não vingou. Com todo o respeito, que eu respeito muito quem é santo. Mas é que com Iemanjá, a gente não brinca não. Na praia, já se viu, né, 2 de Fevereiro, aquele mundaréu. Levei cotovelada e cotovelei, mas cheguei na beira, com a calça branca arriada até a canela, carregando o chinelo na mão e muita aflição no coração, pedindo pra mãe Iemanjá mais nada, só o amor de Maria Rosa pra chamegar minha vaidade. E foi que quando eu fui jogar as flores, já tinha até soltado o durex do buquê pra jogar rosa por rosa, foi Maria Rosa que eu vi lá mais dentro do mar, com três mulheres em volta, fazendo a guarda pra ela não ir muito no fundo. A danada é filha dela, não é?!, tava dançando, o batuque na areia tava forte. E Iemanjá na Maria Rosa, aquela Ogunté danada de brava jogando a espada pra lá e pra cá, e de repente parava pra se olhar no espelho um pouco, porque como diria Zulmira o diabo é vaidoso, e voltava a guerrear. Você sabe, né, o filho de Ogum aqui não conseguia para de ohar, baixei a mão com as rosas e levantei a outra, pra Iemanjá da Maria Rosa vêr que eu não queria nada de mal, não, e que se ela carregava espada eu também carrego mas sou de paz com ela. Eu te juro que ela virou na minha direção e curvou o corpo. Eu curvei também, com um sorriso que não cabia na cara. Quando ela terminou e depois que Maria Rosa deu seus tremeliques, eu esperei. Curvei de novo, fingindo que tava ainda conversando com a Iemanjá, como quem não quer nada, olhando meio pra baixo meio na direção de Maria Rosa pra ver quando ela voltava. E ela veio vindo e quando chegou perto eu ofereci o buquê, dizendo: Flores pra Iemanjá. As rosas, com o calorão todo que fazia desde cedo, já estavam abertas, estufadas, lindas. Maria Rosa tomou um susto, devia ainda tá um pouco tonteada, mas abriu um sorriso grande, aquele sorriso gostoso que ela tem e aceitou. Eu disse ainda: Odoyá, e ela me respondeu: Ogunhê. Safada, essa sabe das coisas. A gente festejou junto até o fim do dia, depois pegamos o ônibus juntos. E ela foi pra casa dela, porque você sabe, né, sendo filha de santo como ela é, tem que se guardar no dia da mãe. Mas no dia seguinte a gente voltou a se encontrar, e no outro dia também e no outro. As flores, eram pra Iemanjá, não deixaram de ser. Antes da gente ir embora Maria Rosa me puxou até a beira da praia, jogou o buquê, uma por uma, se curvou e agradeceu. Eu ouvi bem, que ela falou em voz alta, agradeceu, me pegou pela mão e saímos do mar juntinhos. Safada, aí eu confirmei minhas suspeitas. A danada já tava mesmo de olho em mim, mas não era mulher de se dobrar por homem, não. Bem que a prima Zulmira já tinha me avisado: essa daí é vaidosa que é o diabo!

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

MACULADA

O senhor veja bem, que quando eu explicar o senhor entenderá: o que fiz foi motivado pela fé, e por paixão. De coração aberto, senhor. Eu não quis machucar ninguém. Juro que não. O senhor não tem fé? Não, me desculpe, senhor, eu sei que não vem ao caso, o culpado aqui sou eu, tudo bem. Mas tenta se colocar no meu lugar: eu sou devoto de Nossa Senhora desde criancinha assim como minha mãe era, assim como acredito que todo brasileiro deve ser. Ela é a nossa Mãe. E essa moça, essa atriz, eu acompanhei toda a carreira dela, cada novela que ela faz, eu não perdia um capítulo, assim como todo brasileiro fica grudado com as histórias que passam na TV. Eu sempre achei essa moça bacana, e sempre fazendo uns papéis legais, sempre fazendo umas mulheres boas, que sofrem, sofrem, sofrem levando uns tapas da vida mas sempre estão lá, de coração aberto, pra ajudar quem precisar. Aí eu sempre pensei: essa moça, assim boa, deve ser iluminada, o pessoal sempre fala que artista é abençoado, que leva alegria para o povo. Isso é uma coisa. E esse ano, que eu tô com o coração apertado, cheio de problemas na cabeça, eu fiz promessa. Que eu faria o que fosse preciso para vir até aqui assistir a Paixão de Cristo, pra acompanhar pesoalmente o martírio de Nosso Senhor e para nunca esquecer do exemplo de homem que esse homem foi, e para pedir para Nosso Senhor que me dese uma luz na minha vida. E eu fiz isso por gratidão a tudo, para prestar homenagem a ele, porque nele eu nunca deixei de confiar. Esse sim, com certeza, foi iluminado, abençoado, prova disso é ele ser o filho de Deus, do nosso Senhor, o senhor não acha?! Eu sei que todos nós somos filhos de Deus, mas esse é filho direto, concebido sem pecado, que veio para o mundo para dar alegria para todos os homens. É mesmo meio assim como os artistas, tudo gente iluminada, mas de outro modo. E de repente, logo no começo de tudo, quem eu vejo surgir, vestindo uma roupa azul clarinha, clarinha, bonita, sofrendo as dores do parto? A moça da televisão! E sempre sofrendo, quando eu vi o rostinho dela apertado de dor, eu não acreditei, ou melhor, foi aí que eu me convenci: é ela, a mesma moça que todo dia eu vejo nas novelas, a mesma moça boa que sempre apanha da vida mas nunca deixa de ajudar os outros, de ter o coração aberto...e eu que vim aqui assistir a paixão do Nosso Senhor com o coração aflito, cheio de graças para pedir para ele, eu que vim lembrar do martírio dele por nós para não desestimular dessa vida, chego e vejo a moça e a moça lá, na minha frente, ela era a Nossa Senhora...meus olhos encheram de lágrimas, foi uma emoção, foi um aperto no peito que foi crescendo, crescendo, que eu não conseguia mais controlar, e quanto mais o tempo passava mais eu chorava. Eu achei que isso era um sinal divino, era Nossa Senhora ali, na minha frente. E todas essas luzes ao redor, esse bando de gente, aquela cruz armada lá no alto, a história bonita de Nosso Senhor Jesus Cristo, eu não me aguentei, o senhor entenda: eu juro que não quis machucar ninguém. Eu só queria era beijar a ponta do manto de Nossa Senhora naquele momento em que ela mais sofria, passar a mão nos cabelos dela, dizer que estava tudo bem. Eu só queria pedir a benção, assim como eu pedia para a minha mãe sempre, que Deus a tenha, e acalmar o sofrimento dela, é o mínimo que eu podia fazer, por tudo o que ela fez pela gente, por cada um nós. Até mesmo pelo senhor, o senhor não acha? O senhor não tem também fé no coração?