terça-feira, 30 de junho de 2009

DESEJO DE MUDAR

A coisa foi simples. A tesoura já estava no banheiro, logo, ele nem teve a necessidade de premeditar. E não era estranho que a tesoura estivesse lá, ele já tinha falado que queria fazer a barba, já comprida, e antes de usar a gilete, teria que usar a tesoura para cortar os fios compridos. E a tesoura que ele usava era daquelas tesouras comuns, mesmo, toda de aço prateado, que a gente sempre tem em casa pra cortar papel, abrir embalagens ou qualquer outra coisa. Logo, como ele já tinha dito, ele até já tinha deixado a tesoura no banheiro, pra se lembrar que deveria fazer a barba. Ele já teria feito antes, mas sempre batia uma preguiça. Portanto, ele realmente nem precisou premeditar. Mas a pergunta que fica é o porque. Naquela manhã ele devia ter se levantado decidido. A fazer a barba, mas a fazer o que fez, já de caso pensado, aproveitando a presença da tesoura em cima da pia, não sei. Ele só comentou que queria faz tempo, já, fazer a barba, mudar o visual, renovar, ia até cortar o cabelo, que faz tempo já tinha passado dos ombros, e que cortaria no mesmo dia em que se barbeasse pra não ficar muito estranho, cabelo grande e sem barba, ele não gostava de se ver assim. Naquela manhã, antes de ir pro banheiro, se bem posso imaginar, ele colocou um CD, sempre ficava em casa com música alta. E ele gostava muito de jazz, blues, essas coisas. Imagino a cena: manhã ensolarada, dia bonito, porque eu lembro, aquele dia amanheceu bonito, o microsystem tocando Summertime e ele olhando pra si mesmo no espelho, com uma tesoura na mão. Não sei se ele se olhou no espelho, é outra dúvida que eu tenho, acho muito sangue frio. Mas nessas horas, a gente sempre imagina o que nos passa na cabeça, tem opiniões de como agiria, e tal, mas a gente só sabe mesmo quando passa por isso, é difícil dizer. Eu não me olharia, mas também não me passa na cabeça uma coisa dessas...naquela manhã, o microsystem tocando Summertime ele só olhando no espelho com uma tesoura na mão, querendo mudar. Começa cortar os pelos, corta um lado, corta outro, e quando a barba já ficou rala de novo, que a gilete pegaria, ele não consegue parar de cortar com a tesoura e enquanto a barba vai sumindo no pescoço vai crescendo rápida, sem charme nenhum de ser assim, lentamente, como nos filmes, a mancha de sangue que cobrindo a pele que nem tinta, tingindo a água da pia entupida com os pelos de barba e depois se misturando grossa com a poeira quando o corpo dele cai no chão, e a mancha crescendo, crescendo, crescendo sem parar e ainda cresce, quando penso nisso de novo, só consigo imaginar a mancha de sangue no chão, e cada vez que imagino ela está cada vez maior. A única coisa que posso dizer com certeza é que já tinha cortado a barba, que cortou a barba antes de cortar a pele, pois foi assim que ele foi encontrado. Por isso que não se pode saber se ele premeditou. E ele estava pelado, fez tudo pelado, me aflige mais, quando imagino a cena, imaginar o corpo morto e pelado, coisa mais besta, mas me dá mais aflição. Ah, e o cabelo. O cabelo ainda estava comprido, igualzinho, passando os ombros. Mas também, ele não iria mexer nos cabelos, não gostava da ideia de cortar ele próprio, ele tinha falado que iria no cabeleireiro no mesmo dia em que fizesse a barba.

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