Desse homem sempre se disse por aí que era um sujeito com costume de se alhear dos outros todos e da vida comum. Da vida, acho até exagero dizer, com certeza era na sua vida que mergulhava quando estava naquele jeito de sempre estar pra dentro. Dos outros, de fato sempre assim era. Onde estivesse, numa fila, numa mesa de bar, no balcão da padaria, andando na rua num seu passo todo próprio, um movimento acelerado, corpo todo jogado pra frente seguindo o olhar, sempre alheado. E andava assim como se esquecesse do que havia à sua volta, ou como se visse outra coisa além daquilo que havia, outros lugares, outras ruas, outros passantes. Muitas vezes de brusco parava seu movimento no instante mesmo anterior à ser pego por um carro em toda velocidade, no meio da rua. Ás vezes era ele quem antevia o movimento na hora certa e parava, às vezes era o motorista quem freiava, logo depois gritando impropérios e xingamentos, o que o homem nunca ouvia, pois já estava longe, retomando seu passo de sempre. Pros mais íntimos, eu inclusive, ele segredava que guardava estórias dentro de si. Que elas o assaltavam, de repente, sempre em momentos não imaginados, que uma coisa qualquer que visse ou ouvisse fecundava na sua cabeça e começava a gerar uma pessoa, ou um lugar, e esse ia crescendo, crescendo, evoluindo, se desenvolvendo e virava vidas dentro dele que ele ia testemunhando enquanto se alheava da sua própria vida do momento presente. Um dia eu pedi pra ele pra que ele me mostrasse essas histórias. Ele abaixou a cabeça, flagrei até melancolia no jeito dele, e me disse que não escrevia nada, pois que isso pedia tempo e ele não tinha muito tempo pra se dedicar a isso. Que tinha trabalho, casa, coisas. Pedi então que me falasse delas, e ele também não falou. Falou que elas, as muitas, existiam dentro dele e ele guardava elas consigo, que nunca se atrevia muito a libertá-las, que o que ele desvivia de sua vida vivendo dentro as vidas que gerava já o roubava demais, que sabia que tinha a fama de alheado, que tinha mesmo medo do que podia acontecer se ele deixasse as estórias de dentro vir pra fora. Que até de guardar dentro tinha medo, mas que não conseguia se esquivar, pois quando via já estava bem mais dentro, vivendo o que imaginava. E assim foi que foi vivendo, sendo dentro ou fora, com a passagem do tempo, com a vida do de fora envelhecendo. E era nítido como rápido o homem envelhecia, bem mais que todos os outros, como embranquecia os cabelos, diminuía, ganhava força nos traços da cara, e engordava muito. Naquele passo da pessoa ir diminuindo, quanto mais velha fica, e no entanto seu bojo crescendo. Até que vem um dia e ele passou mal, no meio da rua. Foi quando saía de casa pras suas caminhadas de passo rápido, agora um pouco mais lento, com o avançar da idade, aqui mesmo na frente da sua casa, eu vi tudo, estava no portão conversando com outra vizinha que voltava com as sacolas cheias do mercado Seu rosto de súbito fez uma expressão dolorida, ele colocou as mãos na barriga, as pernas começaram a amolecer e ele caiu na calçada. Corri pra ele, eu mais uns outros, a vizinha das sacolas ficou onde estava, olhando curiosa, talvez pelo peso das sacolas, sei lá, só sei que ela e mais uns outros que vieram na janela assistir o que se passava, curiosas da correria e do grito forte que o homem soltou antes de cair. Fiquei no redor dele, apoiei a cabeça dele com a própria bolsa, que ele carregava. Peguei na mão dele, pois que ele se contorcia todo no chão. Falava com ele, pedia pra ele respirar, mas ele parecia não ouvir muito, ou não conseguia responder, pois era com muito dor que se contraía todo. Até que ele parou, seu olhar pausou pra cima, no céu, mirando o sol forte que brilhava amarelo naquele mais ou menos meio dia meio dia e meio. Respirou fundo, fechou os olhos e então soltou um grito, o grito mais forte do que os outros que tinha soltado até então, e junto com o grito, todo mundo viu, eu juro que não enlouqueci e tem um bando mais de testemunhas pra te confirmar a história: a barriga do homem se abriu e um bando de pessoas e de coisas começou a saltar de lá de dentro, uns homenzinhos pequenininhos, suas mulherzinhas, vestidos dos mais diferentes jeitos, até com roupa de época, que nem dessas de novela antiga, saiu também uns bichos, uns cachorros, saiu até mesmo, e continuou a jorrar por um tempo, uma cachoeira que desaguou na sarjeta e foi correndo rua abaixo, vi mesmo uns peixinhos pulando nela. O homem assistia a tudo compreendendo o que se passava, ao contrário de todos nós que flagramos com susto todos aqueles homens, bichos e coisas se espalhando e sumindo pela rua, virando a esquina, entrando nas casas, na padaria, subindo em árvores, pulando no esgoto. Até que a coisa toda parou, o homem soltou um último suspiro e se contraiu. Nesse momento saiu ainda uma coisa voando que a gente de princípio pensou que fosse um pássaro, pois saiu e foi reto pra cima batendo asas, mas quando a gente pode enxergar direito viu que era um último homenzinho que seguia voando, batendo suas asas, calminho como uma borboleta, e sumiu das vistas de todos, se apequenando no céu, longe. Foi então que o homem, na calçada, se livrou da contração final e repousou de vez. Foi enterrado naquele dia mesmo, sem velório nem outra coisa. Até hoje de vez em quando a gente vê algum vizinho saindo pra rua enxotando com a vassoura algum homenzinho ou bichozinho qualquer que ainda se manteve oculto nas frestas da casa, e o homenzinho sai correndo, fugindo das vassouradas, pela rua, ou se enfiando em algum outra casa mais desatenta. Eu me rio quando vejo, fazer o que. Da minha parte, quando surpreendo algum coisa aqui em casa, deixo na beirada da porta uns farelinhos de biscoito e um pirezinho com leite e me alheio eu do que eu vejo. Eu que não vou sair por aí dando pancada nos sonhos dos outros.
sexta-feira, 25 de junho de 2010
terça-feira, 22 de junho de 2010
FLUVIAL
O que passa nessa beira mais que o rio?
Só eu
só eu sei o quanto passa esse rio
só eu que sinto o frio
só eu que guardo as águas e o frio
Se minha carne é fraca
é porque é pedra que a água esburaca
e o é pois que é margem
só eu guardo em minhas roupas a paisagem
e sob o sol, o céu, a lua corro sem paragem
Na minha pele o sol reluz seu brilho
me ofusca aos olhos de quem me vê passar
e eu passo mais, chega a noite e não me apaga
porque a lua me tatua de estrelas quando escura a madrugada
Mesmo porto em que passei e passarei
só eu guardo no meu corpo todo o cais
só eu passo sem cansaço e sem parar
e corro sempre em frente para o mar.
Só eu
só eu sei o quanto passa esse rio
só eu que sinto o frio
só eu que guardo as águas e o frio
Se minha carne é fraca
é porque é pedra que a água esburaca
e o é pois que é margem
só eu guardo em minhas roupas a paisagem
e sob o sol, o céu, a lua corro sem paragem
Na minha pele o sol reluz seu brilho
me ofusca aos olhos de quem me vê passar
e eu passo mais, chega a noite e não me apaga
porque a lua me tatua de estrelas quando escura a madrugada
Mesmo porto em que passei e passarei
só eu guardo no meu corpo todo o cais
só eu passo sem cansaço e sem parar
e corro sempre em frente para o mar.
sexta-feira, 18 de junho de 2010
UMA PRECE NÃO FEITA POR JOSÉ SARAMAGO
Quando, de manhãzinha, enquanto esperava para fazer um teste, meu telefone tocou trazendo notícia d morte de José Saramago, o primeiro pensamento que me ocorreu foi, assim como faço com todos os ilustres meus desconhecidos que admiro e respeito, rezar por ele. Meu pensamento, porém, travou: rezar por um homem que justamente era tão conhecido por seu ateísmo ferrenho? O que ele diria disso? Imaginei-o pairando por sobre os céus de Lisboa e por outros céus, feito agora somente de matéria etérea e ectoplásmica, num voo sereno, quando de repente surge uma luz, vinda de São Paulo, luz que é minha prece por ele. Ele pára, reconhece e logo gargalha de mim, ou responde com um frase altamente articulada, dizendo que não podemos confiar em Deus, ou coisa do tipo, com seu português lusitaníssimo, e segue seu voo tranquilo. Não, não estou escrevendo sobre religião, boas intenções, solidariedade e outras coisas do tipo. Nem destinaria minha prece o mesmo Deus por quem ele sempre deixou claro sua repulsa. E mesmo que rezasse para Oxalá, nessa sexta-feira de manhã, talvez para Saramago esta palavra, pensei, não representasse mais do que uma interjeição muito usada por ele, inclusive, talvez me respondesse, oxalá você veja além de suas crenças. Será? O fato é que Saramago morre deixando para o mundo seja crente, ateu, comunista, o que for, uma obra vasta e consolidada. Não acho exagero dizer que se tratava de um dos únicos gênios da literatura vivos até então. Eu, pessoalmente, me sinto feliz por ter sido contemporâneo de um autor como ele. Pense bem: não gozei da atualidade histórica de Shakespeare, Dostoievski, Machado, Guimarães e outros, mas pude acompanhar ano após ano novos lançamentos de José Saramago, inclusive posso me gabar do fato de ter um exemplar da Viagem do Elefante assinado pelo próprio. Para mim - como aliás deve estar sendo óbvio - Saramago era mais do que um simples autor que gosto de ler. Saramago era um conselheiro, um professor, um profeta, quase como aqueles que ele várias vezes utilizou de epígrafe, os bíblicos, de barbas vastas, túnicas esvoaçantes o vento com o olhar dilatado e feroz e a boca contraída no ato da epifania em revelar a palavra definitiva. O fato é que Saramago era careca, nunca foi fotografado barbado. Um dos arquétipos do narrador de histórias é o cego, como nos legou a tradição grega através de Homero, Tirésias, que também servia de oráculo. Saramago não era cego completamente, mas usava um daqueles óculos de lentes grossas que tornavam seus olhos pequenos ponto perdidos no fundo de sua face. E era com esses dois minúsculos olhos olhos que ele enxergava o ser humano de hoje e de antes, deixando impressas em suas páginas parábolas que justamente serviam para nos alertar sobre todo o tipo de ignorâncias e horrores de que éramos capazes. E sempre tudo feito para e pelo ser humano. De fato creio que se Saramago não acreditava em Deus, era porque acreditava demasiadamente no homem, e isso era o mote condutor de toda a sua obra. Um idealista, no sentido puro da palavra. Tudo bem, um comunista tardio, pode-se até acusá-lo de um ideal passadista. Mas este era o ponto de partia sua crença. Como diz o sociólogo Chico de Oliveira: "Em todo grande momento da história há ilusões. Sem ilusão ninguém vive" E Saramago não poderia viver e criar algo tão forte quanto o que criou se não tivesse as suas. Pois se até Nietzsche, autor do famoso Deus Está Morto, no final de sua vida voltou-se aos cultos ancestrais dionisíacos, como então podemos criticar uma crença, se também temos as nossas, e se também elas nos levam, como a todos, em incoerências e ignorâncias? O fato é que Saramago acreditava, antes de tudo, no homem. Seus romances, que em grande parte chegam a ser passagens apocalípticas, quase sempre terminam de maneira redentora, a vislumbrar um nova cosmogonia depois do caos, atestam isso. No final de Jangada de Pedra, após um trecho do continente europeu se desgrudar e navegar à deriva pelo alto mar, a vara de negrilho volta a ficar "verde, talvez floresça ano que vem". Depois que a epidemia de cegueira finda, em outro romance,este mais famoso, quando a Mulher do Médico, a única que não havia sido atingida pensa que vai cegar, enquanto os ex-cegos dançam na rua, no meio da chuva,ela olha para o céu, sua vista também embranquece, porém, ao baixar os olhos a cidade ainda estava lá. E Ponto Final. Assim como com Cristo e Caim, em vez de fixá-los numa critica geral a uma tradição religiosa que ele critica em primeiro lugar, Saramago, através de seu famoso narrador redime-os descrevendo-os antes de tudo como humanos que sofrem em sua própria carne os desmandos infantis do Deus que se diverte em brincar com seu destino, que se torna o de todos nós. Em sua crença demasiada no homem, ouso dizer, inclusive, que Saramago fez mais por estas figuras do que própria tradição que os cultua faz. E é por sua mesma crença que imagino, enfim, que Saramago, pairando etéreo nos céus de Lisboa e por outros céus, ao reconhecer vinda de São Paulo a luz oriunda da minha prece - pois enfim eu a fiz, mais como uma conversa, uma mensagem - parou nos ares e sorriu. Recebeu-a, à sua maneira agradeceu-me e continuou no seu voo displicente, ainda observando os homens como sempre fez, só que agora com um pouco mais de distanciamento, ainda além daquele que todo artista tem quando está trabalhando. Pena que não poderemos ter em mãos mais um fruto dessa sua observação. Mas tudo bem. O que disse é muito, e ainda poderemos ler e reler e sempre descobrir outros significados além dos primeiros. Sua "profecia" permanecerá.
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