sexta-feira, 18 de junho de 2010

UMA PRECE NÃO FEITA POR JOSÉ SARAMAGO

Quando, de manhãzinha, enquanto esperava para fazer um teste, meu telefone tocou trazendo  notícia d morte de José Saramago, o primeiro pensamento que me ocorreu foi, assim como faço com todos os ilustres meus desconhecidos que admiro e respeito, rezar por ele. Meu pensamento, porém, travou: rezar por um homem que justamente era tão conhecido por seu ateísmo ferrenho? O que ele diria disso? Imaginei-o pairando por sobre os céus de Lisboa e por outros céus, feito agora somente de matéria etérea e ectoplásmica, num voo sereno, quando de repente surge uma luz, vinda de São Paulo, luz que é minha prece por ele. Ele pára, reconhece e logo gargalha de mim, ou responde com um frase altamente articulada, dizendo que não podemos confiar em Deus, ou coisa do tipo, com seu português lusitaníssimo, e segue seu voo tranquilo. Não, não estou escrevendo sobre religião, boas intenções, solidariedade e outras coisas do tipo. Nem destinaria minha prece o mesmo Deus por quem ele sempre deixou claro sua repulsa. E mesmo que rezasse para Oxalá, nessa sexta-feira de manhã, talvez para Saramago esta palavra, pensei, não representasse mais do que uma interjeição muito usada por ele, inclusive, talvez me respondesse, oxalá você veja além de suas crenças. Será? O fato é que Saramago morre deixando para o mundo seja crente, ateu, comunista, o que for, uma obra vasta e consolidada. Não acho exagero dizer que se tratava de um dos únicos gênios da literatura vivos até então. Eu, pessoalmente, me sinto feliz por ter sido contemporâneo de um autor como ele. Pense bem: não gozei da atualidade histórica de Shakespeare, Dostoievski, Machado, Guimarães e outros, mas pude acompanhar ano após ano novos lançamentos de José Saramago, inclusive posso me gabar do fato de ter um exemplar da Viagem do Elefante assinado pelo próprio. Para mim - como aliás deve estar sendo óbvio - Saramago era mais do que um simples autor que gosto de ler. Saramago era um conselheiro, um professor, um profeta, quase como aqueles que ele várias vezes utilizou de epígrafe, os bíblicos, de barbas vastas, túnicas esvoaçantes o vento com o olhar dilatado e feroz e a boca contraída no ato da epifania em revelar a palavra definitiva. O fato é que Saramago era careca, nunca foi fotografado barbado. Um dos arquétipos do narrador de histórias é o cego, como nos legou a tradição grega através de Homero, Tirésias, que também servia de oráculo. Saramago não era cego completamente, mas usava um daqueles óculos de lentes grossas que tornavam seus olhos pequenos ponto perdidos no fundo de sua face. E era com esses dois minúsculos olhos olhos que ele enxergava o ser humano de hoje e de antes, deixando impressas em suas páginas parábolas que justamente serviam para nos alertar sobre todo o tipo de ignorâncias e horrores de que éramos capazes. E sempre tudo feito para e pelo ser humano. De fato creio que se Saramago não acreditava em Deus, era porque acreditava demasiadamente no homem, e isso era o mote condutor de toda a sua obra. Um idealista, no sentido puro da palavra. Tudo bem, um comunista tardio, pode-se até acusá-lo de um ideal passadista. Mas este era o ponto de partia sua crença. Como diz o sociólogo Chico de Oliveira: "Em todo grande momento da história há ilusões. Sem ilusão ninguém vive" E Saramago não poderia viver e criar algo tão forte quanto o que criou se não tivesse as suas. Pois se até Nietzsche, autor do famoso Deus Está Morto, no final de sua vida voltou-se aos cultos ancestrais dionisíacos, como então podemos criticar uma crença, se também temos as nossas, e se também elas nos levam, como a todos, em incoerências e ignorâncias? O fato é que Saramago acreditava, antes de tudo, no homem. Seus romances, que em grande parte chegam a ser passagens apocalípticas, quase sempre terminam de maneira redentora, a vislumbrar um nova cosmogonia depois do caos, atestam isso. No final de Jangada de Pedra, após um trecho do continente europeu se desgrudar e navegar à deriva pelo alto mar, a vara de negrilho volta a ficar "verde, talvez floresça ano que vem". Depois que a epidemia de cegueira finda, em outro romance,este mais famoso, quando a Mulher do Médico, a única que não havia sido atingida pensa que vai cegar, enquanto os ex-cegos dançam na rua, no meio da chuva,ela olha para o céu, sua vista também embranquece, porém, ao baixar os olhos a cidade ainda estava lá. E Ponto Final. Assim como com Cristo e Caim, em vez de fixá-los numa critica geral a uma tradição religiosa que ele critica em primeiro lugar, Saramago, através de seu famoso narrador redime-os descrevendo-os antes de tudo como humanos que sofrem em sua própria carne os desmandos infantis do Deus que se diverte em brincar com seu destino, que se torna o de todos nós. Em sua crença demasiada no homem, ouso dizer, inclusive, que Saramago fez mais por estas figuras do que  própria tradição que os cultua faz. E é por sua mesma crença que imagino, enfim, que Saramago, pairando etéreo nos céus de Lisboa e por outros céus, ao reconhecer vinda de São Paulo a luz oriunda da minha prece - pois enfim eu a fiz, mais como uma conversa, uma mensagem - parou nos ares e sorriu. Recebeu-a, à sua maneira agradeceu-me e continuou no seu voo displicente, ainda observando os homens como sempre fez, só que agora com um pouco mais de distanciamento, ainda além daquele que todo artista tem quando está trabalhando. Pena que não poderemos ter em mãos mais um fruto dessa sua observação. Mas tudo bem. O que disse é muito, e ainda poderemos ler e reler e sempre descobrir outros significados além dos primeiros. Sua "profecia" permanecerá.

Um comentário:

  1. Bru
    que belo texto e q bela observação sobre saramago... engraçado, não faz duas semanas tinha visto um documentário da tv portuguesa sobre sua vida e obra e também refleti, pensei do q já havia lido dele, q na verdade, seu ateísmo não era em vão, era bem no que eu enquanto pessoa penso, era apenas crer e ver na humanidade a resposta para tudo. Mais que isso, a crença de que refletindo, vivendo a realidade e fora dela é que podemos compreender o mundo, ou apenas questioná-lo na tentativa de compreende-lo.
    O mundo perde, como vc bem colocou, um dos últimos gdes nomes ainda vivos da literatura, para Portugal, a meu ver, mais que isso, perde-se o último gde nome da cultura de um país, uma cultura q, após vivê-la in loco por quase um ano, descobri dormente, sem grandes nomes ou ídolos, em todos os setores. o que ainda vive e sobrevive é aquilo que um dia foram levados em naus pelo mundo. A la Saramago, vivendo essa realidade, passei a me perguntar e procurar esta cultura que parece findar. Parece mesmo q Saramago colocou um ponto final não só em suas obras, mas numa cultura q teima em não caminhar, nào criar, em estar presa ao passado... lamento lírico em bom português lusitano pela perda.
    bjos
    sdd

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