sexta-feira, 25 de junho de 2010

O HOMEM ALHEIO

Desse homem sempre se disse por aí que era um sujeito com costume de se alhear dos outros todos e da vida comum. Da vida, acho até exagero dizer, com certeza era na sua vida que mergulhava quando estava naquele jeito de sempre estar pra dentro. Dos outros, de fato sempre assim era. Onde estivesse, numa fila, numa mesa de bar, no balcão da padaria, andando na rua num seu passo todo próprio, um movimento acelerado, corpo todo jogado pra frente seguindo o olhar, sempre alheado. E andava assim como se esquecesse do que havia à sua volta, ou como se visse outra coisa além daquilo que havia, outros lugares, outras ruas, outros passantes. Muitas vezes  de brusco parava seu movimento no instante mesmo anterior à ser pego por um carro em toda velocidade, no meio da rua. Ás vezes era ele quem antevia o movimento na hora certa e parava, às vezes era o motorista quem freiava, logo depois gritando impropérios e xingamentos, o que o homem nunca ouvia, pois já estava longe, retomando seu passo de sempre. Pros mais íntimos, eu inclusive, ele segredava que guardava estórias dentro de si. Que elas o assaltavam, de repente, sempre em momentos não imaginados, que uma coisa qualquer que visse ou ouvisse fecundava na sua cabeça e começava a gerar uma pessoa, ou um lugar, e esse ia crescendo, crescendo, evoluindo, se desenvolvendo e virava vidas dentro dele que ele ia testemunhando enquanto se alheava da sua própria vida do momento presente. Um dia eu pedi pra ele pra que ele me mostrasse essas histórias. Ele abaixou a cabeça, flagrei até melancolia no jeito dele, e me disse que não escrevia nada, pois que isso pedia tempo e ele não tinha muito tempo pra se dedicar a isso. Que tinha trabalho, casa, coisas. Pedi então que me falasse delas, e ele também não falou. Falou que elas, as muitas, existiam dentro dele e ele guardava elas consigo, que nunca se atrevia muito a libertá-las, que o que ele desvivia de sua vida vivendo dentro as vidas que gerava já o roubava demais, que sabia que tinha a fama de alheado, que tinha mesmo medo do que podia acontecer se ele deixasse as estórias de dentro vir pra fora. Que até de guardar dentro tinha medo, mas que não conseguia se esquivar, pois quando via já estava bem mais dentro, vivendo o que imaginava.  E assim foi que foi vivendo, sendo dentro ou fora, com a passagem do tempo, com a vida do de fora envelhecendo. E era nítido como rápido o homem envelhecia, bem mais que todos os outros, como embranquecia os cabelos, diminuía, ganhava força nos traços da cara, e engordava muito. Naquele passo da pessoa ir diminuindo, quanto mais velha fica, e no entanto seu bojo crescendo. Até que vem um dia e ele passou mal, no meio da rua. Foi quando saía de casa pras suas caminhadas de passo rápido, agora um pouco mais lento, com o avançar da idade, aqui mesmo na frente da sua casa, eu vi tudo, estava no portão conversando com outra vizinha que voltava com as sacolas cheias do mercado Seu rosto de súbito fez uma expressão dolorida, ele colocou as mãos na barriga, as pernas começaram a amolecer e ele caiu na calçada. Corri pra ele, eu mais uns outros, a vizinha das sacolas ficou onde estava, olhando curiosa, talvez pelo peso das sacolas, sei lá, só sei que ela e mais uns outros que vieram na janela assistir o que se passava, curiosas da correria e do grito forte que o homem soltou antes de cair. Fiquei no redor dele, apoiei a cabeça dele com a própria bolsa, que ele carregava. Peguei na mão dele, pois que ele se contorcia todo no chão. Falava com ele, pedia pra ele respirar, mas ele parecia não ouvir muito, ou não conseguia responder, pois era com muito dor que se contraía todo. Até que ele parou, seu olhar pausou pra cima, no céu, mirando o sol forte que brilhava amarelo naquele mais ou menos meio dia meio dia e meio. Respirou fundo, fechou os olhos e então soltou um grito, o grito mais forte do que os outros que tinha soltado até então, e junto com o grito, todo mundo viu, eu juro que não enlouqueci e tem um bando mais de testemunhas pra te confirmar a história: a barriga do homem se abriu e um bando de pessoas e de coisas começou a saltar de lá de dentro, uns homenzinhos pequenininhos, suas mulherzinhas, vestidos dos mais diferentes jeitos, até com roupa de época, que nem dessas de novela antiga, saiu também uns bichos, uns cachorros, saiu até mesmo, e continuou a jorrar por um tempo, uma cachoeira que desaguou na sarjeta e foi correndo rua abaixo, vi mesmo uns peixinhos pulando nela. O homem assistia a tudo compreendendo o que se passava, ao contrário de todos nós que flagramos com susto todos aqueles homens, bichos e coisas se espalhando e sumindo pela rua, virando a esquina, entrando nas casas, na padaria, subindo em árvores, pulando no esgoto. Até que a coisa toda parou, o homem soltou um último suspiro e se contraiu. Nesse momento saiu ainda uma coisa voando que a gente de princípio pensou que fosse um pássaro, pois saiu e foi reto pra cima batendo asas, mas quando a gente pode enxergar direito viu que era um último homenzinho que seguia voando, batendo suas asas, calminho como uma borboleta, e sumiu das vistas de todos, se apequenando no céu, longe. Foi então que o homem, na calçada, se livrou da contração final e repousou de vez. Foi enterrado naquele dia mesmo, sem velório nem outra coisa. A hoje de vez em quando a gente vê algum vizinho saindo pra rua enxotando com a vassoura algum homenzinho ou bichozinho qualquer que ainda se manteve oculto nas frestas da casa, e o homenzinho sai correndo, fugindo das vassouradas, pela rua, ou se enfiando em algum outra casa mais desatenta. Eu me rio quando vejo, fazer o que. Da minha parte, quando surpreendo algum coisa aqui em casa, deixo na beirada da porta uns farelinhos de biscoito e um pirezinho com leite e me alheio eu do que eu vejo. Eu que não vou sair por aí dando pancada nos sonhos dos outros.

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